quinta-feira, 11 de setembro de 2014

Quando eu era o Tal - Sam Kashner

Todo mundo já teve um ídolo na vida, um modelo a seguir, seja um artista, um jogador de futebol ou seu próprio pai ou avô, por mais iconoclasta que alguém possa ser. Alguém em quem se espelhar, que se deseja ser igual, enfim, alguém que você ache foda e quer pelo menos estar com essa pessoa. Sam Kashner, um judeu americano de classe média e vida tranquila de subúrbios de Nova York, um menino sem muitos atrativos para as garotas além do talento e gosto pela poesia, encontrou seus ídolos na Geração Beat: Allen Ginsberg, Jack Kerouac, William Burroughs, Gregory Corso. Ele queria ser um deles, queria viver aquela vida de liberdade e irmandade cáusticas narrada em On the Road, Howl, Naked Lunch ou Bomb. E o que era uma ilusão juvenil pareceu se transformar em realidade quando Ginsberg fundou a Escola Jack Kerouac de Poetas Desencarnados, que contava com a presença do próprio Ginsberg e todos os beats vivos na época (meados dos anos 70): Burroughs, Corso, Peter Orlovsky, além de grandes autores que não formaram o núcleo Beat original mas se destacaram posteriormente, como Anne Waldman. Sam Kashner não teve dúvidas em abandonar uma vaga no conceituado Hamilton College para se tornar o primeiro (e por um bom tempo o único) aluno de poesia da Jack Kerouac School. 

Inicialmente, o jovem poeta se vê realizando um sonho ao conhecer pessoalmente todos os seus heróis, fazer parte de seu mundo, comer na mesma mesa que eles, mas logo percebe que nunca poderia se tornar um deles, pois eles simplesmente não existiam mais! Como a excelente foto da capa mostra - Allen Ginsberg, Philip Whalen e William Burroughs como três pacatos vovôs em uma sauna -, os antigos Beats não estavam mais cruzando a América do Norte atrás de experiências extremas com sexo, drogas e jazz. Agora eles conversavam sobre problemas com hemorroidas, decadência sexual e questões administrativas de uma universidade em busca de um certificado. Bem, talvez exceto por Gregory Corso, que se negava a abrir mão de seu lado selvagem, e de quem Sam mais se aproximou durante sua passagem pela Jack Kerouac School, numa relação de amor e ódio.

Logo na primeira página, o autor emite uma advertência: "Por favor, não leia o livro se você estiver procurando (como eu estava no começo da década de 70) por uma história da Geração Beat." Não sei qual era a intenção dele em escrever isso, mas simplesmente não procede. Quando eu era o Tal é um livro de memórias sobre seu tempo ao lado das lendas Beat já velhas, sim, mas não por isso deixa de ser recheado das mais saborosas histórias dos velhos tempos daquela turma. Entre algumas tarefas como manter Corso longe das drogas para que termine seu livro ou finalizar um poema de Ginsberg sobre sua experiência em fazer sexo oral em Neal Cassady, Sam Kashner esmiúça o tanto que pode sobre as personalidades (quase sempre conflitantes) de seus heróis e descobre histórias que vão do emocionante ao perturbador. Pode não ser uma história da Geração Beat no sentido cronológico, de cabo a rabo, mas uma história que se faz por pequenas passagem esparsas. As citações a personalidades contemporâneas às histórias como Patti Smith, Bob Dylan, Keith Richards e os Beats mortos Kerouac e Cassady são constantes.

Entretanto, o ponto central do livro é mesmo a desconstrução dos ídolos, sua transformação em seres humanos comuns com todos os seus defeitos e qualidades, a mudança da idolatria para um sentimento de maior proximidade, a admiração através da amizade. Isso fica bem claro quando o autor começa a descobrir que seu ídolo pode ser tão fraco ao ponto de se deixar manipular por um guru de meia tigela que bebe, anda de Rolex e está sempre cercado de belas garotas, mas ao mesmo tempo recebe pequenos atos de ternura que só o convívio é capaz de produzir. E fica claro também que mesmo seres humanos comuns podem continuar a ser ídolos.

Paralelo a tudo isso, Quando eu era o Tal não deixa de ser um livro de memórias pessoais, com lembranças familiares, experiências amorosas, medos e expectativas. A intercalação de fotos dos Beats com fotos da vida privada do autor ao final do livro deixa claro esse viés. Acho que para alguém que não conhece a Geração Beat esse livro não será de muita utilidade e proveito, devido às suas referências do início ao fim, mas para os fãs da era mais doida da literatura, é uma leitura bastante útil em uma abordagem original.

Editora: Planeta
Páginas: 360
Disponibilidade: normal
Avaliação: * * * *

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