domingo, 12 de fevereiro de 2012

A Drifting Life - Yoshihiro Tatsumi

O sonho de toda criança é poder ser algo bem divertido e emocionante quando crescer. Eu queria ser jogador de futebol, desenhista ou astronauta, mais tarde astro do rock, e até hoje tenho minhas fantasias profissionais - adoraria trabalhar fazendo programas de viagem para algum canal de tv que pagasse tudo! Poucos de nós podem desfrutar desse prazer que deve ser trabalhar com algo que realmente se sonhou algum dia - sonho inocente de criança, não me refiro a planos para passar em algum concurso público que pague um salário absurdo e morar na orla. Yoshihiro Tatsumi é uma dessas pessoas, e além dessa realização ainda lhe foi possível contar essa história através de um belo livro.

A Drifting Life é um álbum de quadrinhos autobiográfico japonês escrito e desenhado por Tatsumi, um importante autor que criou o termo "gekiga" para distinguir trabalhos mais sérios de mangás de temas infantis - o gekiga em relação ao mangá seria um termo com a mesma conotação que as graphic novels têm em relação aos comics americanos. A história se passa praticamente toda durante a década de 1950, período no qual Hiroshi, o alter-ego do autor, inicia seu amor pelos quadrinhos japoneses e desenvolve sua técnica até se tornar um respeitado artista.

Muito mais que uma autobiografia, A Drifting Life aborda, com muita ternura, a história dos quadrinhos japoneses, além da própria história do Japão. Entre páginas que mostram detalhes da vida pessoal do autor, apresentam-se diversos personagens marcantes para a indústria dos mangás, alguns muito famosos, como seu ídolo Osamu Tezuka (o "Deus do mangá" para os japoneses), outros praticamente desconhecidos aqui no Brasil até para os mais aficionados - editores ou autores underground da época. Ao mesmo tempo é apresentado um Japão que saía do trauma da Segunda Guerra Mundial e iniciava sua ascensão no mundo capitalista como uma nova potência econômica, alguns detalhes também bem estranhos para o público ocidental - ou alguém conhece bem os atletas e cantores japoneses de 60 anos atrás?

O assunto central de A Drifting Life, a criação e o desenvolvimento do gekiga, é mostrado com bastante afinidade com a vida de Hiroshi e a história do Japão, que não aparecem no livro de forma relapsa, sem sentido. Questões de economia do Japão e mercado de mangás tem íntima relação com os trabalhos de Hirsoshi / Tatsumi, bem como seus dramas pessoais e suas preferências. A criação de um "mangá que não é mangá", como o protagonista chama, foi diretamente determinada por uma outra paixão sua que é mostrada quase que em todos os capítulos: o cinema, hábito frequente de Hiroshi que o faz importar esse tipo de linguagem para a arte sequencial japonesa.

Os desenhos vão de simples quadros com dois personagens dialogando sem fundo a painéis mais bem trabalhados. Para as partes históricas, o autor utiliza desenhos até mais realistas, quase representações de fotos de época. Os desenhos do gekiga diferem consideravelmente do mangá regular, sobretudo na falta de artifícios para representar movimentos e nas famosas onomatopeias, utilizadas em menor escala, ainda que existentes.  

Gostei muito de A Drifting Life, mas tenho certas ressalvas em relação à edição da Drawn & Quarterly, até onde sei a única no mercado ocidental. Aqui no Brasil, grande mercado consumidor de quadrinhos japoneses (acho que o maior fora do Japão), estamos acostumados já há mais de dez anos com uma fidelidade à estrutura do mangá. Quase todos os mangás publicados no Brasil mantêm a ordem de leitura japonesa, da direita para a esquerda, mas como os americanos têm fama de resistirem muito à introdução de hábitos de outros povos ou diferenças culturais (isso fica claro no cinema falado em outras línguas), a edição deles foi adaptada para o modo de leitura ocidental, o que, por mais bem feito que seja o trabalho de edição, traz consideráveis prejuízos à narrativa. Outra estranheza para quem está acostumado a ler as edições brasileiras de mangá é a tradução de muitas onomatopeias no próprio quadro, isso também modifica bastante uma importante parte estética do mangá. 

Apesar de alguns problemas editoriais, essa é a única edição ocidental, e vale muito a pena ler esse livro, mesmo para quem nunca leu mangá. A Drifting Life é uma leitura muito boa e uma ode aos quadrinhos japoneses, para mim esse trabalho tem sentido semelhante a Amarcord ou Cinema Paradiso para o mundo do cinema. Infelizmente Yoshihiro Tatsumi não é um artista muito conhecido no Brasil, e não tenho muitas esperanças que algum dia esse trabalho será lançado por aqui, mas não é difícil encontrá-lo em livrarias no exterior e até aqui no Brasil (acabei de verificar que a Livraria Cultura tem disponível, por exemplo). Além da bela história, é um livro grande, grosso, capaz de garantir bastante tempo de entretenimento e esteticamente cai muito bem numa bela prateleira cheia de livros e quadrinhos.

Editora: Drawn & Quarterly
Páginas: 855
Disponibilidade: importado
Avaliação: * * * *

obs: No ano passado foi lançado um filme em animação chamado Tatsumi, baseado no livro, gostaria muito de encontrá-lo.

sexta-feira, 27 de janeiro de 2012

Passo de Caranguejo - Günter Grass

Heróis e vilões são fruto de escolhas políticas e da força de determinados grupos. É o que faz com que Jesus seja considerado historicamente muito mais importante do que Simão bar Kochba, rebelde judeu que deu muito mais dor de cabeça para o Império Romano do que o messias cristão. E é o que faz também com que minorias se pronunciem a favor de determinadas personalidades ou fatos através do revisionismo histórico - termo que hoje é encarado muitas vezes de forma negativa, pois está muito identificado com seu lado mais controverso, o "revisionismo do holocausto" (que por isso é classificado por determinados historiadores como negacionismo, em vez de revisionismo).

O revisionismo histórico é o ponto de partida para Passo de Caranguejo, romance mais recente de Günter Grass, o mais importante escritor alemão vivo, que atingiu seu auge na década de 1960. Paul é um jornalista mal sucedido nascido na Alemanha Oriental no dia 30 de janeiro de 1945, num navio de refugiados que afundava após ser bombardeado por um submarino russo; o navio era chamado Wilhelm Gustloff, em homenagem a um líder nazista assassinado por um judeu em 1936. Apesar de Paul ser um personagem fictício, a história de Wilhelm Gustloff é verídica: responsável pela distribuição do livro Os Protocolos de Sião, foi assassinado por David Frankfurter, e considerado então um mártir da luta do nazismo contra os judeus, tendo por isso sido lembrado com um funeral digno da presença de Hitler e outros líderes nazistas em sua cidade natal (Schwerin, coincidentemente a mesma cidade de Paul). Para completar a glorificação desse ícone da irracionalidade humana, os nazistas utilizaram seu nome para batizar o navio abordado no livro, utilizado o mesmo como cruzeiro turístico em tempos de paz (no qual a mãe de Paul passou férias) e com fins militares durante a guerra.

Esse fato histórico atrelado à sua própria história pessoal o persegue como um fantasma em toda sua vida. O revisionismo histórico começa com sua mãe, uma espécie de entusiasta do navio e guardiã da memória desse fato, considerado por ela injustamente relegado ao esquecimento, apesar de ter sido uma tragédia naval de proporções maiores do que a do Titanic. E o revisionismo vai além, através de grupos neonazistas organizados na internet, a fim de colocar Wilhelm Gustloff (tanto o navio como o "mártir") em seu devido lugar na história. Orientado por uma figura enigmática identificada apenas como "chefe", Paul inicia uma investigação sobre os fatos históricos em questão e narra sua própria trajetória familiar. Seu desejo é que esse assunto finalmente seja encerrado, mas longe disso, Paul terá que lidar com os efeitos que aparentemente nunca acabam, chegando finalmente a seu filho. 

Memória, culpa e até uma internet que engatinhava na época (o livro se passa em 1997, e foi escrito em 2002) são temas abordados em Passo de Caranguejo. O título é referência ao fato de que o narrador tem sempre que voltar para dar um passo à frente, ou seja, é impossível prosseguir sem voltar e examinar a história. Além disso, redenção e perdão por erros cometidos na juventude também me pareceram aspectos bem abordados nesse livro de maturidade de Günter Grass - o fato é que, pelo que pesquisei, esses sempre foram temas recorrentes em seus livros, e em 2005 o autor publicou a primeira parte de sua autobiografia, Nas Peles da Cebola, no qual assume que fez parte de uma tropa de elite nazista quando era adolescente.

Passo de Caranguejo certamente não é o melhor representante da obra de Günter Grass, mas tem uma escrita bastante eficiente e dinâmica, mostrando que um autor de décadas anteriores ainda pode produzir bons trabalhos. Uma leitura acessível e agradável, que me faz ter vontade de conhecer seus trabalhos mais famosos, como O Tambor

Editora: Nova Fronteira
Páginas: 205
Disponibilidade: normal
Avaliação: * * * *

sábado, 21 de janeiro de 2012

500 Essential Graphic Novels, The Ultimate Guide - Gene Kannenberg, Jr.

Graphic Novel é um termo popularizado na década de 70 por Will Eisner para diferenciar obras em quadrinhos em formato de livro, com histórias completas - e a princípio com temas mais sérios - das tradicionais comics americanas, mensais, com tramas que podem se estender por anos. Geralmente, o leitor de quadrinhos que adquire o hábito na infância tem as Graphic Novels como uma evolução natural de sua paixão, enquanto o leitor que descobre os quadrinhos depois de adulto não tem muita paciência com os formatos mensais e seus temas juvenis e já parte logo para esse formato mais sofisticado. As Graphic Novels foram responsáveis por uma boa parcela do status que os quadrinhos adquiriram como leitura séria nas últimas décadas.

500 Essential Graphic Novels, The Ultimate Guide, é mais um desses livros de listas que tanto fazem sucesso atualmente, e ainda com a marca de "guia definitivo". Obviamente, nenhum guia ou lista pode ser considerado definitivo, pois depende de fatores subjetivos dos autores e de espaço para caber tanta coisa, e este livro não fica imune a isso. Autores indiscutíveis como Alan Moore, Frank Miller, Art Spiegelman, Robert Crumb, Roy Thomas, Neil Gaiman e Stan Lee, é claro, estão amplamente listados; ao lado desses, obras excelentes de artistas nem tão famosos, alguns trabalhos que muitos não gostam e considerarão indignos de estarem ali e muita coisa underground e desconhecida, sobretudo para nós brasileiros. E, naturalmente, um monte daqueles "quadrinhos do coração" para você que não couberam nas 500 primeiras posições, o que vai te deixar indignado, da mesma forma que os livros de listas sobre filmes, discos, etc. Notoriamente, como costuma ocorrer com esses trabalhos, sente-se uma grande falta de títulos de diversas partes do mundo, para nós especificamente trabalhos brasileiros ou argentinos - o livro foca nos mercados mais proeminentes dos quadrinhos, o americano, o europeu e o japonês.

Gene Kannenberg, Jr dividiu o livro em gêneros de quadrinhos, como um lista de filmes - pensar os quadrinhos dessa forma, e não abarcados num único gênero "quadrinhos", sempre me pareceu corretíssimo: aventura, não-ficção, crime/mistério, fantasia, ficção geral, horror, humor, ficção científica, super-heróis e guerra. Antes de cada capítulo, uma introdução sobre a evolução do gênero nos quadrinhos. Na apresentação de cada título, um resumo da trama, resenha, última edição, indicação etária e, como não poderia faltar numa obra dedicada a quadrinhos, o máximo de ilustrações possíveis. Para sanar um pouco o problema da não inclusão de determinados títulos por falta de espaço, o autor ainda disponibiliza indicações de leituras afins ao final de cada resenha.

500 Essential Graphic Novels é um livro indispensável para fãs de quadrinhos, e bastante útil para quem não conhece nada do assunto mas sabe que é um meio artístico sério e deseja começar a entendê-lo. Para o fã, fica a recomendação de tentar adquiri-lo através de importação pela internet, pois é irresistível passar horas relembrando algumas das maiores obras de quadrinhos e conhecendo pequenas preciosidades ainda não descobertas; para o leitor que se interessa mas não tem tanta urgência, pelo menos fique ligado em sites e livrarias brasileiros mesmo ou, em caso de viagem ao exterior, pode ser encontrado nas prateleiras das principais livrarias lá de fora.

Editora: Collins Design
Páginas: 528
Disponibilidade: importado
Avaliação: * * * *