segunda-feira, 31 de janeiro de 2011

Deadeye Dick - Kurt Vonnegut Jr.


Kurt Vonnegut Jr. é um autor que, antes de ler, eu já sabia que me tornaria fã. Cheguei a este autor pesquisando sobre outro assunto, não me lembro ao certo se era sobre a banda Deadeye Dick (da música New Age Girl, que me traz deliciosas lembranças afetivas dos anos 90) ou armas nucleares, mas logo que soube do teor de suas obras e de sua vida, tratei de procurar algo escrito por ele. Coincidentemente, primeiro livro seu que encontrei garimpando num sebo foi justamente Deadeye Dick, não tão conhecido como suas principais realizações, Café da manhã dos Campeões, Cama de Gato e Matadouro 5, que virou filme.

A obra de Vonnegut é caracterizada primeiramente pelo humor inteligente, que se mostra nas situações absurdas criadas pelo autor. Um breve resumo do livro em questão comprova isso: Deadeye Dick (gíria para indicar alguém que tem uma ótima pontaria com armas de fogo) é o apelido pejorativo do protagonista Rudolph Waltz, recebido na adolescência, após dar um despretensioso tiro para o alto e acertar a bala no meio da testa de uma mulher que arrumava a casa a oito quadras. O acontecimento bizarro é apenas a premissa para uma história de humor negro, que tinha tudo para ser deprimente se tivesse sido contada de outra forma que não a de Vonnegut. Como escreveu um crítico a respeito do livro: "Deadeye Dick é tão leve que, quando acaba, você quase esquece que contém uma morte por radioatividade, um duplo assassinato... uma decapitação, uma nevasca que mata centenas, e... a aniquilação de uma cidade inteira por uma bomba de nêutrons".

A segunda característica de Vonnegut é a criação de personagens extremamente cativantes, sejam amáveis ou odiáveis. A vida de Rudolp Waltz sempre foi medíocre - teve um emprego entediante, todos de sua cidade o tratam mal por causa do acidente e nunca amou ou foi verdadeiramente amado nem mesmo pelos seus pais -, porém ao estilo Harvey Pekar, consegue através de sua narração torná-la agradável e engraçada. Paralelamente, o protagonista apresenta histórias de diversas pessoas de sua cidade, como o homem que fugiu para a Ásia com a obsessão de encontrar a cidade de Katmandu, ou seu próprio pai, que na juventude foi amigo e salvador de um jovem pintor austríaco chamado Adolf Hitler. O autor aparenta ter uma facilidade tão grande em criar personagens que em diversas passagens, pessoas são simplesmente citadas pelo narrador, e em apenas uma frase é construído um personagem que, se não complexo, dá margem para a imaginação do leitor correr solta, como neste trecho em que apresenta o destino de alguns destes interessantes coadjuvantes: "Eugene Debs Metziger vivia em Atenas, Grécia, onde possuía vários cargueiros com a bandeira da Libéria."(...) "Sua irmã, Jane Addams Metzger, que encontrou sua mãe morta e o aspirador ligado há tanto tempo, uma garota gorda e feia, como recordo, e ainda gorda e feia, de acordo com Ketchum, vivia com um roteirista tcheco refugiado em Molokai, no Avaí, onde comprou um rancho e criava cavalos árabes". Muitos de seus personagens aparecem em mais de um livro, fazendo parte de um universo vonnegutiano coerente, bem como alguns conceitos e locais.

Outro importante ponto na obra de Kurt Vonnegut Jr. são os temas abordados, sempre de acordo com suas posições em relação à sociedade. A crítica central em Deadeye Dick é a questão das armas nos Estados Unidos, a mesma que Michael Moore abordou em Tiros em Columbine, mas há bastante espaço para outras situações de uma sociedade cheia de contradições como é a americana, como por exemplo o racismo. Vonnegut era socialista, humanista e tinha posições bem liberais em relação a temas delicados como a eutanásia. Sobre religião, ao longo da vida se declarou de diversas maneiras, como cético, agnóstico, ateu, e achava que o que motivava as pessoas a entrarem para alguma igreja era a solidão.

Deadeye Dick serviu-me muito bem como introdução à obra desse fabuloso autor, e já consegui alguns outros livros seus por preços baixos em sebos e feirinhas, porém infelizmente em português. Existe uma antiga versão traduzida de Deadeye Dick, mas com um título adaptado tão absurdo ("Bode Vermelho"!) que me faz temer pelo conteúdo. Os originais são mais difíceis de encontrar aqui no Brasil, mas estou de olho caso me depare com algum deles daqui pra frente.

Editora: Bantam Dell (em inglês) e Difel (em português, se você tiver coragem)
Páginas: 240
Disponibilidade: normal em inglês, esgotado em português.
Avaliação: * * * * *

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Matadouro 5 - Kurt Vonnegut

Revolução no Futuro - Kurt Vonnegut 

domingo, 30 de janeiro de 2011

O Sequestro dia a dia - Alberto Berquó


Em 1997, foi lançado o filme O que é isso, companheiro?, que conta a história do sequestro do embaixador americano Charles Burke Elbrik por um grupo de oposição ao regime militar. Com uma história muito bem contada e ótima direção de Bruno Barreto, o filme fez sucesso, mas era uma adaptação da verdadeira história, na qual alguns personagens foram criados a partir da síntese de duas ou mais pessoas reais, e situações foram modificadas (o jogo do domingo era Fluminense x Cruzeiro, e não Flamengo x Vasco!). Logo surgiu uma polêmica a respeito do verdadeiro papel de Fernando Gabeira no sequestro, que não teria sido tão destacado a ponto de ter sido representado no papel principal por Pedro Cardoso (polêmica que, pelo que me consta, remete à época do lançamento do livro). Polêmicas, repercussões e o interesse do público no filme abriram espaço para produções a respeito do assunto, e uma delas foi O Sequestro dia a dia, livro de Alberto Berquó que apresenta a história real que serviu de base para o roteiro do filme.

Escrito de forma cronológica entre os dias primeiro e sete de setembro de 1969, a escrita de Alberto Berquó tem um estilo bem jornalístico e cru, quer dizer, bem fraco mesmo, o que não chega a estragar uma leitura que tem como objetivo principal a elucidação de fatos referentes ao acontecimento, já que o livro é pequeno e vai direto ao ponto, exceto em partes onde o autor utiliza o recurso de apresentar notícias do cotidiano brasileiro que ocorriam paralelamente ao episódio, coisas como festas da alta sociedade, com o intuito de mostrar o quanto a maioria dos brasileiros estavam alienados da atmosfera política na época da ditadura, recurso interessante, se tivesse sido utilizado por um escritor mais hábil. O caráter puramente informativo chega ao ponto de, em algumas passagens, os parágrafos serem divididos brevemente no estilo "minuto-a-minuto", tipo um diário ou um resumo de melhores momentos de um jogo - teria até ficado legal se tal recurso tivesse sido utilizado paralelamente ao momento do jogo de domingo, mas não foi.

O Sequestro dia a dia não é um livro prazeroso de se ler, mas vale para quem se interessa pelo assunto e tem curiosidade a respeito desse fato ímpar e sensacional da história do Brasil, para quem quer informação. O livro conta com ótimas fotos de personagens da época - entre eles Gabeira, José Dirceu e Frankiln Martins - e ao final há uma relação de todos os participantes do episódio com suas situações em 1996 - alguns mortos desde aquele tempo, outros tendo se tornado figuras públicas ou pessoas que largaram a atividade política para ter uma vida simples como arquitetos, publicitários, empresários. Leitura rápida para uma tarde ou noite de insônia.

Editora: Nova Fronteira
Páginas: 137
Disponibilidade: normal
Avaliação: * * *

Dica: Existe um filme muito bom que mostra, ao mesmo estilo desse livro, uma história paralela: a libertação e viagem para o México dos presos políticos que foram trocados pelo embaixador americano. Chama-se Hércules 56.

domingo, 23 de janeiro de 2011

Mas não se mata(m) cavalos? Horace McCoy


Antes de qualquer coisa, alguém poderia dar uma explicação científica sobre a correção gramatical deste título adaptado para o português: afinal, "não se mata", ou "não se matam cavalos"? Quase todas as edições brasileiras apresentam a primeira forma, porém a mais atual, da L&PM é escrita do segundo jeito.

O pequeno livro de estreia de Horace McCoy mostra uma maratona de dança em Hollywood na época da Depressão (década de 1930), onde os pares devem dançar ininterruptamente (ou pelo menos balançar o corpo emulando alguma dança) durante semanas, somente com pequenos intervalos de dez minutos. O par campeão leva para casa um prêmio de mil dólares e todos têm abrigo e alimentação garantidos durante o evento. Logo no início, o leitor fica ciente que a história termina com o competidor Robert Syverten assassinando sua parceira Gloria Beatty com um tiro na cabeça, a pedido dela, e então o protagonista conta sua história desde o momento em que conheceu Gloria até sua condenação.

Li uma crítica a respeito de Mas não se mata(m) cavalos? na qual o livro era muito elogiado e o autor comparado a Hemingway, e por isso tive interesse em lê-lo, mas fiquei muito desapontado com esta leitura. Quem fez essa comparação entre os dois autores nunca deve ter lido Hemingway. O sol também se levanta foi um dos primeiros livros sérios que li na adolescência, e lembro-me até hoje do impacto que aquelas passagens introspectivas produziram em mim, uma escrita diferenciada que eu nunca tinha visto (e até hoje tenho-as como exemplo do que eu quero ser quando crescer!). Até O Velho e o Mar, monótono do início ao fim, tem seu mérito pela extrema qualidade da escrita de Hemingway. Nada disso é visto em Horace McCoy, tudo me pareceu superficial em sua escrita: personagens, descrições, impressões do protagonista, além de uma trama sem graça e previsível - e minha leitura foi ainda mais prejudicada pela tradução obsoleta e com trechos claramente equivocados de Érico Veríssimo numa edição de 1982 da editora Abril. Enfim, quem inventou essa comparação com Hemingway forçou a barra.

Apesar dessa comparação ter me causado uma grande decepção, Mas não se mata(m) cavalos? não é um livro ruim, apenas mediano, e se seus méritos não estão nas capacidades literárias do autor, há que se ter boa vontade com a justa análise de Horace McCoy sobre os Estados Unidos de seu tempo. A sociedade apresentada pelo autor é aquela que se desenvolve paralelamente ao modelo industrial do século XX, da produção e consumo em massa, no qual a obsolescência programada e o rápido descarte são as bases para o avanço. A maratona de dança mostra que as próprias pessoas fazem parte deste processo de descarte, sobretudo na indústria cultural de Hollywood, que estava em seu apogeu - a condição para ganhar o concurso não é o talento, ou a qualidade da dança dos participantes, mas a capacidade de resistir a semanas de esforço físico desumano; das dezenas de pessoas inscritas, apenas um par ganharia o prêmio, enquanto os outros sacrificam-se por quase nada. Do lado de fora, o público acompanha e torce por algum desses desconhecidos durante algumas horas, vai para casa, dorme, cumpre seus compromissos, e no dia seguinte volta para mais algumas horas de diversão. Tendo hoje que aturar praticamente todos os meios de comunicação falando sobre Big Brother durante a maior parte do ano, a impressão é que a indústria do entretenimento não evoluiu nesse aspecto durante as últimas oito décadas.

Os personagens, apesar de não muito elaborados, retratam as duas opções numa sociedade como essa: integração total ao sistema ou rompimento definitivo. Robert sonha com o estrelato em Hollywood, e vê a maratona como um dos poucos meios de ser encontrado por alguma figura importante do cinema; Gloria é uma niilista que odeia tudo isso, e aceita participar do evento porque não tem outro meio de sobrevivência. Outros personagens secundários representam o público irracional, os empresários inescrupulosos, representantes de empresas e figuras típicas da ambígua sociedade americana como gangsters e moralistas. A relação entre os participantes e os de fora mostra a condição de exploração a qual são submetidos os despossuídos, chegando em muitos casos à exploração sexual.

Horace McCoy não tem uma escrita exemplar, mas escreve sobre temas importantes como um analista atento ao contexto em que viveu. Na média, Mas não se mata(m) cavalos? é regular, e até por ser pequeno, pode ser lido em uma tarde como passatempo descompromissado. Não fez sucesso à época de seu lançamento nos Estados Unidos (1935), mas recebeu atenção uma década depois, através de uma edição francesa. Foi transformado em filme em 1969 (A noite dos desesperados), com Jane Fonda interpretando Gloria Beatty.

Editora: L&PM
Páginas: 150
Disponibilidade: normal
Avaliação: * * *

quinta-feira, 13 de janeiro de 2011

Tempos Interessantes. Uma Vida no Século XX - Eric J. Hobsbawm


Tempos Interessantes - Uma Vida no Século XX é a autobiografia de Eric Hobsbawm, historiador vivo mais famoso na atualidade. Sua vida em si nada tem de muito interessante que justifique uma autobiografia, mas como diz o título, é como Hobsbawm trata o tempo em que viveu que diferencia este excelente livro de uma bobagem egocêntrica qualquer. Mesmo sem muitas situações emocionantes ou anedóticas, não é muito difícil que alguém que nasceu em Alexandria em 1917, cresceu bilíngue na Áustria e na Alemanha (onde logo tornou-se comunista na época do advento do nazismo) e começou sua vida adulta como órfão pobre na Inglaterra da década de 1930 tenha o bastante para relatar. Acrescente a isso a genialidade de um historiador que interpreta fatos de modo bem originais e escreve de dentro da academia para o mundo leigo e você tem um ótimo livro para vários dias de leitura.

A produção de um autobiógrafo historiador já começa com táticas utilizadas no próprio ofício, ou seja, a utilização de fontes históricas além da própria memória, como fotos e documentos de familiares. Assim tem início o livro, com uma investigação de sua família para mostrar o ambiente em que foi criado, até suas primeiras memórias, e ao longo das páginas, muitos diários e publicações em jornais foram úteis para o então octogenário historiador lembrar o que havia acontecido décadas antes, e ao mesmo tempo tentar interpretar o que se passava na cabeça do jovem Hobsbawm. Entrevistas e diversos outros registros também são amplamente explorados pelo autor para traçar pequenas biografias dentro da autobiografia, de pessoas que cruzaram sua vida e tiveram importância em sua formação, como professores e companheiros de partido.

Se levarmos em conta que Hobsbawm trabalha com o conceito de curto século XX (que vai de 1914 a 1991, ao contrário do longo século XIX, que começa em 1789, com a Revolução Francesa), conclui-se que o autor viveu praticamente durante todo este século e, com exceção da I Guerra Mundial e da Revolução Russa, ele pode ter algum tipo de percepção sobre todos os acontecimentos relevantes para a história do período, a começar pelo advento do nazismo (ele é de família judaica e vivia na Alemanha) e a crise de 1929 aos olhos de uma criança de 12 anos. Uma experiência de vida invejável.

O livro continua através de sua vida posterior na Inglaterra, durante a II Guerra Mundial (quando teve apagada participação, pois era comunista assumido e despertava suspeitas das autoridades inglesas) e na década de 1950, auge de sua produção intelectual. A partir de então, no final da década de 1960, Hobsbawm passa a se sentir mais espectador do que ator nos acontecimentos do mundo, já que admite que, se não conseguia vestir calças jeans, não podia mais se sentir como protagonista - exageros à parte, sua carreira continua a progredir rumo ao estrelato, com as publicações de importantes livros como as continuações de A Era das Revoluções (1962), participações em debates e programas de televisão, aulas em diversas universidades do mundo (inclusive uma visita à Unicamp, em plena ditadura militar), entre outras atividades sem visibilidade do grande público, mas de grande expressão no mundo intelectual. Na verdade, o que Hobsbawm quis dizer foi que, à luz dos acontecimentos de 1968, já sentia-se fora do clima de ação daquela época e podia interpretar os fatos como um observador, mesmo que de forma equivocada - como admite em certo trecho.

Exceto por alguns capítulos muito específicos, como um em que o autor escreve sobre a atividade acadêmica de historiador ou outro em que a política interna britânica é abordada, quase tudo da história do século XX que é analisado por Hobsbawm é muito interessante, mas para mim os quatro últimos capítulos se destacam, onde o autor reserva espaço para discutir a situação dos países que marcaram sua vida: França (especialmente Paris, o centro do mundo para quase todos de sua geração, para onde o autor viajou em todos os anos de sua vida adulta, exceto durante a dominação nazista), Itália (que exerceu atração pelas suas belas localidades e pela particularidade de seu comunismo), o Terceiro Mundo (que não podia deixar de atrair um comunista nessa época) e os Estados Unidos (que o autor considera o centro do mundo atual, como o que foi a França para sua geração, e onde ele passava vários meses do ano dando aulas). Sua análise sobre tais países ultrapassa muito a abordagem de um historiador e de um viajante em férias, sendo a visão perspicaz de um observador que discorre temas tanto do passado como do momento em que escrevia, "De FDR (Franklin Delano Roosevelt) a Bush" como o título de um desses capítulos. Ainda assim, parece que estes últimos capítulos deixam escapar alguns "pormenores" da vida de Hobsbawm, como a perda da virgindade em um bordel parisiense, uma gracinha em relação a aventuras sexuais com sua esposa num parque na Hungria e até a confidência da utilização de um chaveirinho do PT que recebeu quando visitou Porto Alegre durante um governo petista! Escrito em 2002, o livro coloca o PT sendo lembrado com admiração e carinho, e sua criação como um movimento proletário tardio respeitado pelo autor.

Tempos Interessantes é mais um livro de História do que uma autobiografia, mas vale lembrar que em A Era dos Extremos, no qual o século XX é tratado de maneira mais acadêmica e menos passional, Hobsbawm já havia utilizado muito de sua experiência pessoal para tratar de determinados temas, e quem já leu este reconhecerá muitos destes trechos novamente abordados. Tempos Interessantes apresenta uma escrita já familiar a quem costuma ler Hobsbawm: densa - mas não cansativa -, capaz de prender a atenção do leitor durante dias, e acrescentar muita informação de qualidade de modo acessível.

Editora: Companhia das Letras
Páginas: 482
Disponibilidade: normal
Avaliação: * * * * *