terça-feira, 29 de dezembro de 2009

O Último Imperador - Edward Behr


Geralmente, bons livros são adaptados para o cinema, mas no caso de "O Último Imperador", aconteceu o inverso. A obra-prima de Bertolucci fez tanto sucesso que foi imperativo (sem trocadilhos) que a impressionante história verídica de P`u-i fosse parar nas prateleiras das livrarias.

Também geralmente, as histórias transformadas em filmes perdem muito de sua qualidade - o que também não é o caso aqui, pois "O Último Imperador" é um filme fantástico, onde se destaca a genialidade do diretor -, mas quase sempre elas perdem algo de seu conteúdo, dadas as limitações de tempo até nos maiores longas metragens. O filme de Bertolucci não foi feito para explicar os pormenores da vida de P`u-i, mas sim apresentar esta figura ímpar na história de uma forma artística insuperável. Lendo o livro após ver o filme, percebe-se que muita informação extra foi incluída nesta biografia, mesmo histórias paralelas de coadjuvantes na vida de P`u-i, para o deleite de qualquer espectador que saiu dos cinemas satisfeito na década de 1980.

A biografia do último imperador da China escrita por Edward Behr começa antes do que se mostra no filme, apresentando a situação na China, que era uma quase colônia das potências europeias, humilhada e praticamente saqueada, e as intrigas palacianas que cercaram a sucessão da maligna imperatriz viúva Tz`u-hsi, predecessora de P`u-i. Só então o livro começa a tratar da vida do último imperador, que aos três anos já fora coroado e tornou-se prisioneiro na Cidade Proibida - a China era uma República, mas os líderes não ousaram destituir o povo deste símbolo presente na história do país desde o terceiro milênio antes de Cristo.

Todo o restante da vida de P`u-i - sua expulsão da Cidade Proibida, a aliança com os japoneses que conquistaram a Manchúria antes da II Guerra Mundial, sua captura pelos comunistas de Mao Tsé-Tung no poder, a prisão e sua transformação em cidadão modelo da República Popular da China - além de serem esmiuçados aos mínimos detalhes, são analisados pelo autor, dando muito mais sentido a diversas passagens do filme. Todos que cruzaram seu caminho - esposas, servos, os poucos amigos que o ajudaram e as muitas pessoas que tiraram proveito de sua posição - também tiveram este cuidado do autor. Depois de todas as informações dispostas nas 280 páginas do livro, cabe ao leitor julgar esta personalidade sem igual: bondoso? inteligente? covarde? mesquinho? manipulador? sincero?

Edward Behr utilizou como fontes de sua pesquisa, além de documentos oficiais, jornais e conversas com pessoas que viveram ao lado de P`u-i, dois livros escritos por personagens desta história: um do tutor do jovem imperador, o escocês Reginald Fleming Johnston, que narrou seus dias na Cidade Proibida, e a própria autobiografia de P`u-i, um livro cheio de meias-verdades escrito por um ghost writer chinês. Intitulado "O Último Imperador da China", também teve tradução para o português, e é encontrável em sebos.

O filme de Bertolucci é uma aula de como fazer um filme, e ganhou uma porção de prêmios pelo mundo. O livro, que ganhou um prêmio Gutemberg, é uma aula de história da China e do mundo contemporâneo traçada ao redor de alguém que viveu diferentes mundos da forma mais intensa possível, alguém que nasceu nobre, muito cedo se tornou imperador e morreu jardineiro e cidadão comunista, talvez sinceramente, talvez por interesse. Veja o filme, depois leia o livro (apesar de esgotado, é fácil encontrar em sebos), e ligue o dvd de novo para atentar aos detalhes.

Editora: Record
Páginas: 281
Disponibilidade: esgotado
Avaliação: * * * * *

terça-feira, 22 de dezembro de 2009

Fritz the Cat - Robert Crumb


Já citei Rubert Crumb por aqui na resenha sobre a Zap Comix, livro no qual ele é um entre outros excelentes artistas, mas pela sua importância no mundo dos quadrinhos, a editora Conrad publicou há alguns anos boa parte de sua obra em volumes de boa qualidade. A maior parte desta coleção se encontra na minha estante, e um dos livros mais importantes é "Fritz the Cat".

Fritz é um gato antropomorfizado através do qual Robert Crumb criticou a sociedade americana da década de 1960. Ele é um malandro desbocado que faz sexo com todo o tipo de garotas, usa drogas e se mete em situações insólitas muitas vezes alheias à sua vontade. Cada camada social é representada por animais diferentes - por exemplo, os corvos são uma metáfora interessante para os negros, e seus perseguidores, os gatos, são os brancos. Também numa crítica debochada ao macartismo e à fobia anticomunista ainda vivos naquela época, os chineses são retratados como ratos. Outros animais são utilizados somente para representar a diversidade, sobretudo das garotas com quem Fritz transa - jacarés, cadelas, éguas, etc.

O personagem foi inspirado no gato do autor quando criança, "Fred" (segundo suas palavras, "o típico gato miserável, vagabundo e sujo"), e na primeira história ("Vida de Gato"), que é bem diferente das outras, com os gatos em suas formas originais e na única ocasião onde aparecem seres humanos, Fritz é apenas um coadjuvante, sendo Fred a estrela. Estas primeiras páginas são desenhadas a lápis, ainda durante a juventude de Crumb, uma época em que ele desenhava para divertir seus irmãos e evitar ter contato com o resto do mundo. "Vida de Gato", ao invés de zoar com toda a sociedade da época, é uma história simples, inocente (se comparada com o restante) e uma das melhores do livro, mas acho que só pode ser compreendida corretamente por quem tem ou já teve um gato - o que é o meu caso.

O conteúdo começa a ficar mais pesado a partir da segunda história, na qual Fritz, agora bípede e vestido, visita a casa da mãe, revê a irmã que cresceu e acaba trepando com ela. O restante são sátiras a figuras da época - a maioria ainda muito atuais -, como vendedores pilantras, mágicos charlatões, agentes secretos, ídolos do rock, líderes revolucionários. No meio de todas as excelentes histórias, para mim uma se destacou: "Fritz cai fora", que traduz de forma sem igual o climão de fins da década de 1960, meio hippie, meio beatnik, totalmente livre. Aqui, Fritz se cansa de tudo, taca fogo nos seus livros da faculdade (e consequentemente no apartamento que dividia com os amigos), se mete em várias furadas e mete o pé na estrada.

A coletânea "Fritz the Cat" é fundamental na bibliografia básica de quadrinhos por causa da importância histórica do personagem e de sua qualidade, e ignorando erros mínimos, a edição da Conrad merece nota máxima, já que na época de seu lançamento (2004) era a antologia mais completa do gato em todo o mundo, incluindo até desenhos inacabados.

Robert Crumb foi o criador e maior representante dos quadrinhos underground, tendo virado tema do documentário "Crumb", de 1994. Ele está com 66 anos e atualmente se dedica a quadrinizar todo o antigo testamento - palavra por palavra! -, mas quem imagina o lado religioso do autor incorre ao erro: ele mesmo já disse que é exclusivamente pela bela grana que está recebendo para isso - 1 milhão de dólares adiantados só pelo "Gêneses", segundo rumores.

Fritz the Cat nasceu como uma brincadeira entre irmãos, se tornou o principal personagem underground da década de 1960, chegou até a virar uma animação bacana (que dá para encontrar em sites de download) e por causa de todo esse sucesso foi morto pelo seu criador. Sua última história é de 1972.

Editora: Conrad
Páginas: 136
Disponibilidade: normal
Avaliação: * * * * *



domingo, 13 de dezembro de 2009

O Messias de Duna - Frank Herbert


Para mim, Duna é a melhor série de livros de ficção científica - e talvez a melhor série de livros em geral. Depois que li o primeiro volume da série, demorei mais de um ano para digeri-lo por completo, tamanha a complexidade do universo criado por Frank Herbert. Neste período, pesquisei bastante sobre tudo relacionado à série, li Duna desde o começo mais uma vez para relembrar os muito detalhes e termos criados pelo autor, vi o filme de 1984 (que é uma porcaria!) e só então comecei a ler "O Messias de Duna", o segundo livro da série.

O livro tem início 12 anos após os acontecimentos de Duna, tempo durante o qual a Jihad é estabelecida pelo universo e Paul Atreides comanda o poderoso império através de suas hordas fremem. Atormentado por suas visões do futuro (ou das possibilidades do futuro), o Muad`Dib (como Paul é conhecido entre seus fanáticos seguidores) luta para se desviar de futuros desastrosos e moldar a realidade de acordo com seus planos, enquanto uma conspiração tenta destruí-lo em benefício da grande companhia de comércio, já que o imperador controla sozinho toda a produção de melange, o produto mais importante do universo.

Apesar de ser bom, "O Messias de Duna" não alcança o estrondoso sucesso do primeiro livro, mas para os fãs é uma bela continuação desta maravilhosa saga. Não há tanta ação, e nem tanta reviravolta na história, sendo este volume bastante menor que o primeiro, mas a trama é muito bem elaborada e se transforma quase numa história policial quando se chega ao final e toda a conspiração é finalmente elucidada. O aparecimento de novos componentes do universo de Frank Herbert, como alienígenas e organizações secretas é um prato cheio para quem leu Duna e ficou querendo mais, bem como o destino e o retorno de antigos personagens.

"O Messias de Duna" é fundamental para os fãs da série, mas descartável para quem não leu o primeiro volume, pois para estes será uma leitura incompreensível.

Editora: Nova Fronteira
Páginas: 283
Disponibilidade: normal
Avaliação: * * * *

Livro Digital


sábado, 5 de dezembro de 2009

827 Era Galáctica - Isaac Asimov


A fantástica imaginação de Isaac Asimov rendeu à humanidade 463 livros, entre diversos temas, mas principalmente ficção científica, gênero que o tornou venerado por milhões de nerds de diversas gerações. Para minha introdução à sua obra, deixei de lado os famosos contos de robôs (como "Eu, robô" e "O Homem Bicentenário") ou a considerada obra prima "Fundação" e escolhi algo menos conhecido, "827 Era Galáctica", primeiro livro da série "Império Galáctico".

Esta série se passa num futuro aparentemente muito distante, no qual a Terra é um planeta insignificante em relação aos outros milhares habitados por seres humanos, assolado por radiação (provavelmente por causa de uma guerra nuclear), e por isso pobre e vítima de preconceito do resto da humanidade espalhada pelo universo. Entretanto, é ignorado que a própria humanidade surgiu aqui e depois se espalhou pelo universo.

A trama se dá em torno de Joseph Schwartz, um alfaiate americano idoso que, caminhando pela rua fazendo planos para sua iminente aposentadoria, é atingido por uma raio que o transporta para o ano 827 da Era Galáctica, uma época em que as pessoas não têm o direito de viver após os 60 anos, devido aos escassos recursos do planeta - exceto personalidades muito importantes. Paralelamente, um arqueólogo chega à Terra para tentar provar que a humanidade tem origem no nosso planeta (o que contraria a teoria vigente de que os seres humanos teriam se originado de forma dispersa), e um cientista e sua filha trabalham em experiências para aumentar as capacidades mentais dos seres humanos, sob a repressão do governo terrestre e um quadro de tensão crescente deste com o império galáctico.

A trama do livro é bastante interessante, nem tanto pelo que acontece com os personagens e o rumo da história, mas sim pela imaginação de um planeta Terra no futuro, suas instituições, sociedade, ecologia e posição política no universo. Os personagens são bons, mas não ótimos, e o final é um pouco previsível. "827 Era Galáctica" está longe de ser um livro sensacional, mas não deixa de ser uma leitura leve e divertida e uma porta de entrada para o poder da obra de Isaac Asimov.

Editora: Hemus
Páginas: 235
Disponibilidade: esgotado
Avaliação: * * * *

sábado, 28 de novembro de 2009

Zap Comix - vários autores


No final da década de 1960, em meio à guerra do Vietnã, ao conflito capitalismo x comunismo e ao sistema conservador que reprimia qualquer expressão de liberdade, jovens do mundo todo erguiam suas barricadas, físicas ou simbólicas, jogando pedras em soldados dos regimes ditatoriais no Brasil e no leste europeu, ou fazendo sexo e usando drogas sem parar. Tudo foi afetado: os hábitos, a música, a moda, e também os quadrinhos, que até então eram ingênuos e infantis.

A caretice dos quadrinhos tinha uma base forte: na década de 1950, um tal Fredric Wertham escreveu um livro chamado "A sedução dos inocentes", no qual afirmava "cientificamente" a periculosidade das histórias em quadrinhos nas mentes das criancinhas - segundo essa teoria, os garotos sofriam alto risco em pendurarem um lençol no pescoço e se jogarem das janelas dos prédios achando que iam voar como o Super-Homem... Para salvar sua pele, as próprias editoras entraram num esquema de autocensura através do "Comics Code Authority", um selo obrigatório em todos os gibis, indicando que os mesmo não apresentavam "riscos" para seus pequenos leitores - um longo index indicava o que era permitido e o que não era, como por exemplo, o bem ser derrotado pelo mal... Furar este bloqueio não era fácil, e poucos conseguiram, como em 1952 a revista Mad (que teve que mudar de formato para não ser classificada como gibi e foi investigada pelo FBI sob suspeita de incitar a delinquência juvenil). Contudo, a venerada Mad foi vendida em 1961 por questões fiscais, e então entrou no esquema das grandes editoras, perdendo seu encanto e sua importância. A caretice voltava aos quadrinhos, mas no ambiente de mudanças da década de 1960, surge a Zap Comix, no emblemático ano de 1968.

A Zap Comix é uma lenda entre os fãs de quadrinhos, por ter quebrado a barreira do Comics Code Authority e aberto as portas para os quadrinhos adultos e underground. Seu nascimento já é uma história e tanto: Robert Crumb, seu criador, vendia pessoalmente as revistas nas ruas de São Francisco. Sua namorada, grávida, decidiu ajudá-lo, e o casal perambulava pela capital hippie carregando as revistas dentro de um carrinho de bebê. Com o sucesso do primeiro volume, a publicação passou a contar com mais seis autores: S. Clay Wilson, Robert Willians, Spain Rodriguez, Victor Moscoso, Rick Griffin e Gilbert Shelton, cada um com sua doidice (surfe, drogas, carros, comunismo...), mas todos extremamente talentosos. Após a publicação da edição no. 4, os autores tiveram que enfrentar processo judicial por causa do conteúdo imoral da revista, o que foi, ao lado do julgamento dos oito ativistas de Chicago, um recado de que a repressão armava seu contra-ataque nos Estados Unidos, e a era hippie já era. Apesar disso, a Zap Comix teve 14 números, até 1996, quando Crumb desistiu de participar. As revistas eram lançadas mais ou menos a cada 3 anos. Em 2005 foi lançado o número 15, mas desconheço se Crumb participou.

O conteúdo das revistas era de cunho altamente contestador, apresentando tudo o que era proibido, e ao mesmo tempo mostrando o clima da época. Algumas histórias tinham apenas uma página, outras um pouco mais, mas todas eram recheadas com muito humor. Algumas narrativas apresentam uma organização básica e estrutura normal, outras são puro psicodelismo, e ainda tinham páginas que satirizavam as propagandas dos gibis da época, e outras que eram simplesmente painéis surreais. Zoação com os quadrinhos caretas também não faltam, como o Javali-Maravilha. Uma das histórias mais engraçadas é a de um barco de piratas gays, que expõem seus desejos sexuais com seus companheiros explicitamente (coisas como "adoro que todos os marujos gozem na minha boca!"), e são atacados por um barco de piratas lésbicas. Outra também muito legal é uma passagem da vida real - uma discussão entre três membros da Zap e Crumb, quando este decidiu largar a revista - contada de três maneiras diferentes, cada uma mais engraçada que as outras.

O volume publicado pela editora Conrad é uma compilação de 1968 até 1996, e apesar do belo trabalho dos editores brasileiros, da ótima introdução de Rogério de Campos contextualizando a obra e um acabamento de primeira, justamente aí se localiza um ponto fraco: me pareceu que as histórias compiladas perdem o vigor e muito de seu sentido fora da estrutura independente da época, mas essa é a única maneira de conhecermos esse importante trabalho, pois seria comercialmente inviável a reedição dos originais como foram publicados. O único ponto negativo da edição brasileira foi a falta de créditos dos artistas e datas em algumas histórias, mas pelas referências a acontecimentos contemporâneos a elas, dá para se ter uma noção aproximada de sua data na maioria das vezes. Por causa desses pequenos problemas, minha avaliação da edição brasileira de Zap Comix não vai atingir a nota máxima, mas as histórias em si são excelentes e essenciais para quem curte quadrinhos.

Editora: Conrad
Páginas: 187
Disponibilidade: normal
Avaliação: * * * *

segunda-feira, 23 de novembro de 2009

A Formação das Almas - José Murilo de Carvalho

Durante o período da ditadura militar no Brasil, uma quantidade considerável de recursos do país foi utilizada em realizações que muito pouco contribuíram para o avanço na direção de um povo apto para sua autodeterminação, sendo uma delas a ação deliberada no sentido de formar cidadãos sem o menor pensamento crítico em relação ao seu país. Apesar de ter nascido nos últimos anos deste período infame e, portanto, ter passado os primeiros anos da escola já no governo do bigodudo maranhense, lembro bem de ter aprendido que o verde da bandeira representa nossas florestas, o amarelo nossas riquezas e que o sentido de "ordem e progresso" era simplesmente como está no dicionário - resultado dos 20 anos anteriores, tempo em que minha professora aprendeu isso na escola dela.

Com a ditadura chegando ao fim, uma onda de desejos de libertação tomou conta do Brasil, não só com as letras sacanas da Blitz e do Ultraje a Rigor, mas também nas obras dos historiadores da época, como "A formação das Almas", de José Murilo de Carvalho. Este interessante livro aborda o período inicial da república com um pouco menos do glamour contido nos livros didáticos da época da minha mãe, mostrando o real sentido de fatos relacionados ao ato da proclamação.

A questão central abordada no livro é: que país se quis criar com a mudança de regime? E afinal, que país foi criado? Primeiramente, há que se saber quem queria criar este país, e devemos ser apresentados aos personagens que lideraram este processo. O problema é saber quem foram os verdadeiros líderes que promoveram a proclamação da república, já que cada um deles (Deodoro, Constant, Floriano e Bocaiúva) teve seu nome escrito na história de acordo com os interesses da época. Sem que se chegasse a um consenso sobre quem seria o herói da pátria, a grande responsabilidade recaiu sobre Tiradentes, que até então nada tinha a ver com a história em questão, mas sua escolha pegou tão bem que sua imagem foi utilizada (sem sua permissão, diga-se de passagem) tanto por governos militares como por grupos guerrilheiros.

Além da discussão sobre os heróis e formadores de nossa pátria, o livro de José Murilo também discute os símbolos do país, como a bandeira e o hino (de forma muito menos gloriosa do que a história das florestas e das riquezas nas cores do pavilhão), e os que tentaram ser mas não foram - como a tentativa de se identificar a república como uma mulher (que logo foi transformada em prostituta pelos opositores do novo regime). Tudo isso foi fruto de inteligente pesquisa do historiador da UFRJ, com seu característico sarcasmo sutil e muitas figuras de época.

"A Formação das Almas" é um excelente trabalho de nível acadêmico bastante acessível também para leitores de fora da academia, sem chateações eruditas ou linguagem para iniciados no ambiente dos pós-doutores. Essencial para qualquer cidadão que pretende conhecer as origens do país onde vive, compreender as entrelinhas nas palavras da bandeira nacional ou pelo menos saber quem são os senhores representados nas estátuas que dividem lugar com as cotias na Praça da República.

Editora: Companhia das Letras
Páginas: 168
Disponibilidade: esgotado
Avaliação: * * * * *

sábado, 29 de agosto de 2009

Abusado - Caco Barcellos


No início desta semana, o Bope matou o bandido conhecido como "Joaozinho", braço direito de Fernandinho Beira-Mar, o maior traficante de drogas em atividade no Brasil, mesmo atrás das grades. Na segunda-feira, uma multidão acompanhou o enterro de Joaozinho, que era tido como herói por causa de seu assistencialismo nas favelas que comandava. Comerciantes do centro da cidade de Duque de Caxias, vizinha do Rio de Janeiro, fecharam as portas com medo de arrastões. Segundo alguns colegas que moram lá, motoqueiros armados e carros de som soltavam ameaças a quem quer que ouvisse. As autoridades negam o fato, afirmando tratar-se de boatos.

A demonstração de vitalidade da figura do bandido-herói me fez lembrar uma leitura de alguns anos atrás que aborda o tema, o livro "Abusado: o dono do morro Dona Marta", de Caco Barcellos. Nessa polêmica obra, o jornalista acompanhou parte da vida de Marcinho VP, chefe do tráfico na favela carioca de Botafogo, "abusado" (bandido que troca tiros com a polícia) e herói da comunidade. Apesar de ser uma reportagem, o livro foi feito em forma de romance, sendo "JulianoVP" (pseudônimo, como para todas as outras pessoas relacionadas a ele) o protagonista que atua numa história cheia de passagens chocantes e curiosas (como a filmagem do clip "They don´t care about us", do Michael Jackson) intercalada com sub-tramas de personagens da favela, como a do homem educado que subia o morro para cheirar cocaína ou da mulher que cansa de ser "otária" e vai viver a vida do jeito que quer.

Caco Barcellos vivenciou muitos momentos com o traficante, se arriscando quando ele era foragido na Argentina ou subindo o morro para gravar entrevistas. Talvez essa proximidade com Marcinho VP tenha interferido na imparcialidade jornalística do autor, que apresentou o marginal com seu lado humano, sua infância, sua religiosidade, seu carinho por Jovelina Pérola Negra, seu gosto por pequenas coisas como feijão, dentre outras características que muitas vezes ofuscavam o lado perverso de alguém que lucra com o vício alheio e ameaça a vida de outras pessoas - apesar de Caco Barcellos em momento algum ter demonstrado apoio ou sequer simpatia por suas ações criminosas.

A exposição pessoal de Caco Barcellos no processo de produção deste livro foi bem maior do que se tivesse sido qualquer outro jornalista, já que ele não era nada desconhecido pela polícia, pois após escrever "Rota 66", livro que trata de grupos de extermínio formados por policiais, teve que viver um bom tempo longe do Brasil por causa de ameaças de morte. Apesar de algumas falhas, "Abusado" é resultado de um trabalho bastante competente de investigação e interpretação, atrelado a uma escrita envolvente.

Editora: Record
Páginas: 588
Disponibilidade: normal
Avaliação: * * * * *

Livro Digital

Nota: algum tempo depois do lançamento do livro, Marcinho VP foi encontrado morto dentro de uma lixeira no presídio onde cumpria pena.

segunda-feira, 24 de agosto de 2009

A Assustadora História do Holocausto - Michael Robert Marrus

Na época de escola, assisti a uma palestra de Aleksander Henryk Laks, um judeu polonês que sobreviveu ao holocausto. Me lembro de coisas horríveis que ele disse para todas as crianças e adolescentes no auditório, como ver sua mãe entrando no trem que partia para Auschwitz ou seu pai morrendo a pauladas. Obviamente aquilo teve um impacto muito forte sobre todos nós, e provavelmente muitos, como eu, guardaram para o resto da vida. Desde então, o holocausto, assim como tudo que se refere à Segunda Guerra Mundial, se tornou de grande interesse para mim, e tive a oportunidade de aprofundar os conhecimentos nesse tema com a leitura de "A Assustadora História do Holocausto", de Michael R. Marrus.

O livro é voltado para o grande público, dando uma visão geral sobre o que foi o holocausto e como agiram os judeus, os nazistas, as populações locais, a igreja católica, a opinião pública mundial e a comunidade internacional. Não há pesquisa original do autor, mas sim um apanhado de toda a historiografia de até então (meados da década de 1980) com a interpretação de Michael Marrus. Com o início do livro debatendo sobre a natureza do holocausto - a discussão entre historiadores "funcionalistas" e "intencionalistas", cada capítulo posterior analisa e relativisa a culpa de cada um dos envolvidos - a opinião pública que não pressionou o suficiente, a pífia resistência judaica, as populações que apoiaram o extermínio dos judeus ou os governos dos países aliados que fizeram menos do que podiam no final da guerra. "A Assustadora História do Holocausto" é uma obra grandiosa e repleta de imagens chocantes - em minha opinião, as de jogos infantis e desenhos que estimulavam o ódio nas crianças alemãs são piores do que a de cadáveres.

Ainda que seja uma obra generalista e escrita para o público não especializado, e que o historiador canadense fuja do rigor acadêmico através da emissão de opiniões pessoais, o trabalho de Michael Marrus não descarta a citação de fontes e discussão historiográfica, e apresenta uma vasta recomendação de leituras para quem quiser se aprofundar no assunto. Não conheço a atual historiografia sobre o holocausto, mas digamos que este livro é, para a época em que foi escrito e para o público menos rigoroso, completo, a melhor opção para conhecer mais sobre este massacre que vitimou cerca de 6 milhões de judeus em pouco mais de cinco anos, além de ciganos, homossexuais, católicos confundidos com judeus e outras minorias. Vale lembrar que o título do livro (The Holocaust in History) foi modificado no Brasil para ter mais apelo através da série de "assustadoras histórias" (do terrorismo, da maldade, etc.).

Editora: Prestígio
Páginas: 431
Disponibilidade: esgotado
Avaliação: * * * * *

sexta-feira, 14 de agosto de 2009

O Condenado - Bernard Cornwell


Minha relação com os livros de Bernard Cornwell é, no mínimo, engraçada. Veja a primeira postagem deste blog. É sobre "As Crônicas de Artur", um livro que avaliei como excelente, puxei tanto o saco que parece que estou falando de quase uma obra-prima. Não que eu tenha exagerado, os três livros da série são o que há de melhor que já li neste estilo, mas... passe para o segundo livro do autor aqui no blog, "O Tigre de Sharpe". É um bom livro para se divertir, mas comparado com os anteriores, repare os primeiros sinais de decepção no meu discurso. Não dava para acreditar que um livro daquele não era exceção na carreira de alguém que tivesse escrito algo tão bom como "As Crônicas de Artur". A nova chance foi dada na série "As Crônicas Saxônicas", que gira em torno da história dos vikings, povo que sou fascinado. Lida desde o início, esperei dessa série a mesma vitalidade que havia lido anteriormente, mas aí apareceram os mesmos vícios de escrita de Cornwell, a repetição da velha fórmula que gera receita até hoje, e as coisas começaram a ficar claras para mim: Bernard Cornwell seria uma escritor de um livro só.

Uma última chance ainda foi dada no livro "O Condenado", mais porque já o havia comprado anteriormente do que por boa vontade. Neste livro, Bernard Cornwell apresenta uma história diferente das escritas anteriormente, com a violência dos campos de batalha dando lugar à investigação de um crime, como sempre na Inglaterra, mas agora no século XIX. Rider Sandman, um oficial do exército britânico que chega das guerras napoleônicas falido e não encontra nenhuma ocupação digna, se vê envolvido na investigação de um assassinato que pode condenar um inocente à morte. Cabe a ele descobrir quem é o verdadeiro assassino e fazer justiça - a mesma chamada para dezenas de filmes que já passaram no Super Cine, ambientada num período diferente.

O primeiro capítulo do livro descreve a execução de pessoas na forca com um detalhismo impressionante, e isso me empolgou para ler logo o restante do trabalho, mas a partir de então, o bom e velho estilo comercial de Cornwell toma o lugar da criatividade e da beleza descritiva de uma introdução onde o autor deu tudo de si e perdeu toda a energia criativa para continuar as outras centenas de páginas. Começa um texto maçante, uma história paralela de amor platônico e vários trechos monótonos. Dava até para me arrastar mais um pouco na leitura e saber como termina esse livro que não chega a ser tão ruim, mas preferi parar no meio e procurar alguma coisa melhor para ler.

Talvez se eu nunca tivesse lido nada de Bernard Cornwell eu não ficaria tão irritado, mas repito, o que cansa é a falta de recursos do autor para diferenciar seus livros uns dos outros. Talvez eu esteja sendo pouco piedoso também, pois Bernard Cornwell é só um ser humano, e não um semideus como a molecada o trata pelas páginas da internet. Não é todo mundo que nasceu com o dom de um Jorge Luis Borges ou um Ernest Hemingway, não podemos esperar tanto de alguém só porque faz sucesso, Paulo Coelho está aí para provar. Não chego a achar Cornwell um escritor medíocre, há que se levar em conta o que ele fez nas "Crônicas de Artur", mas, daqui pra frente, nada de novos livros dele, só a releitura da sua melhor obra mesmo.

Editora: Record
Páginas: 321
Disponibilidade: normal
Avaliação: * * *

Livro Digital

segunda-feira, 10 de agosto de 2009

Cassino Royale - Ian Fleming

Esqueça o musculoso Daniel Craig, a longa jogatina de pôquer, as organizações terroristas e as cenas de ação explosivas do "007 - Cassino Royale" que foi parar nos cinemas do mundo inteiro em 2006. O livro que iniciou a série sobre o agente secreto mais famoso do mundo serviu apenas de base para o filme, já que, devido às mudanças profundas ocorridas no mundo desde a década de 1950 até hoje, seria comercialmente inviável ser muito fiel ao original.

"007 - Cassino Royale", de 1953, é uma história passada num contexto de apogeu da guerra fria, quando o grande inimigo do ocidente era o comunismo. Se no filme recente o vilão Le Chiffre era um banqueiro de organizações terroristas, no original ele é o tesoureiro de uma organização secreta comunista que, após perder o dinheiro investido em prostituição, busca desesperadamente reavê-lo antes que seja morto pela Smersh - agência soviética encarregada de dar corretivos em traidores e incompetentes. Para Le Chiffre, a maneira mais rápida de conseguir o montante é através do bacará, jogo de cartas de apostas fortes no Cassino Royale - no filme o jogo é o pôquer, mais popular nos dias de hoje.

O livro de Ian Fleming, o primeiro da série, apresenta o despertar de James Bond, sua promoção a agente "00" (o sétimo do grupo de agentes que têm licença para matar) e sua inexperiência em lidar tanto com situações que pedem sutileza ao invés de força bruta quanto nas relações com as "bond girls". Com a primeira delas, Vesper, o espião se relaciona de forma diferente das demais, e o final é semelhante ao do filme (exceto por como a "vaca" morre, já que no filme acontece de maneira mais apoteótica), com o machão aprendendo a lição de como tem que encarar os relacionamentos na sua profissão a partir de então.

As diferenças entre filme e livro não se resumem ao contexto histórico ou às modificações para dar mais apelo comercial à história. Para quem busca a mesma ação encarada por Craig, Brosnan e Connery, o livro vai ser decepcionante. Aquela tradicional cena longa de tirar o fôlego presente na maioria dos filmes da série não existe no livro, e a pancadaria dá lugar a descrições, técnicas de espionagem e contraespionagem e estratégia. Particularmente em "Cassino Royale", as partidas de bacará se desenvolvem por páginas e mais páginas, perdendo até um pouco do sentido para quem, como eu, não conhece o jogo, já que as jogadas são bastante detalhadas.

Para quem não sabe, Ian Fleming trabalhou numa agência de inteligência britânica, e quando largou a profissão começou a escrever a série 007 baseando-se nas suas experiências. Cassino Royale, por exemplo, se baseou supostamente em temporadas pouco proveitosas com jogatinas em Portugal durante a Segunda Guerra Mundial. A personagem "M", que no livro é um homem, foi inspirada em um superior seu durante o trabalho para o serviço secreto da marinha. Já James Bond teria sido criado depois de Fleming ter conhecido Dusko Popov, um agente duplo com quem Fleming teve contato no cassino em Portugal, mas o nome do espião não tem nada a ver com isso: James Bond é o nome de um autor de um livro sobre ornitologia que Fleming lia na Jamaica, sua casa por longos anos.

"007 - Cassino Royale" foi uma bela surpresa por causa de todas essas diferenças com o filme, e uma boa iniciação nos livros da série. Nem melhor, nem pior do que o filme, agradou de outro modo.

Editora: Record (edição antiga da Civilização Brasileira)
Páginas: 204
Disponibilidade: normal
Avaliação: * * * *

segunda-feira, 3 de agosto de 2009

Bantos, Malês e Identidade Negra - Nei Lopes

"Bantos, Malês e Identidade Negra" teve sua primeira edição na década de 1980, quando poucas obras sobre povos africanos e sua influência no Brasil eram publicadas por aqui, e quase nada se falava a respeito do tema nas escolas e nas grades curriculares básicas das universidades. De lá pra cá, a pressão de educadores e entidades da sociedade civil promoveu a popularização do assunto, até que em 2003 foi estabelecida uma lei que obriga o ensino da história africana e dos negros no Brasil nas escolas, e hoje, tanto livros que tratam da história como a literatura africana são de fácil acesso - ainda que a "moda" tenha encontrado seu apogeu há cerca de 5 anos, e hoje tenha perdido um pouco do apelo para áreas mais faladas ultimamente, como China e Índia. Neste contexto, o livro de Nei Lopes me parece um tanto pioneiro, pois desconheço trabalhos de acesso fácil ao público não-especializado anteriores a ele no Brasil.

Prova da acessibilidade deste livro é sua organização. Dividido em duas partes, cada qual apresentando uma visão geral sobre cada um dos dois principais tipos de povos africanos que desembarcaram no Brasil como escravos, a escrita de Nei Lopes não é rebuscada e os temas são expostos desde os conceitos mais fundamentais - talvez porque não seja historiador e, consequentemente, não tenha seus vícios.

A primeira parte, que trata dos malês - nome genérico dado aos escravos de religião islâmica - é iniciada com aspectos bastante básicos da religião muçulmana, de sua expansão pela África, dos motivos da conversão de vastas áreas e do aspecto mais impressionante desta religião que muitas vezes nos é apresentada como purista e radical: o sincretismo que ocorreu entre o Islã e as religiões africanas tradicionais. Certa vez, o embaixador Alberto da Costa e Silva descreveu o constrangimento de uma autoridade de um país africano islamizado durante uma demonstração popular onde o Islã era celebrado ao som de batuques...

-->O Islã sofreu ainda mais modificações no Brasil. Os malês eram caracterizados como rebeldes, e esse islamismo criou a mítica do negro altivo, insolente, insubmisso e revoltoso. Ademais, eles eram intransigentes em seus princípios religiosos, o que gerava a antipatia de outros negros, principalmente os Bantos. Eram temidos pelas suas “feitiçarias” (a palavra mandinga tem origem no nome de um grupo étnico islamizado). Os malês representaram uma unidade acima das distinções étnicas, com uma escrita própria (todos eles eram alfabetizados em árabe), mas principalmente um importante fator de mobilização revolucionária - -->estes escravos foram o germe de rebeliões ocorridas na Bahia de 1807 a 1835 (ficando o movimento de 1835 conhecido como “revolta dos malês”). Tudo isso é relatado no livro com bastante transparência, sem termos específicos de historiadores ou palavras tiradas de dicionários do século XIX.

A segunda parte do livro aborda os bantos, originalmente a denominação de um tipo linguístico africano, mas significando na realidade brasileira praticamente -->todos os grupos étnicos negro-africanos do centro, do sul e do leste do continente que apresentam características físicas comuns e um modo de vida determinado por atividades afins. -->A religião dos bantos, na qual a noção de força toma o lugar da noção de ser e os ancestrais são venerados por causa de sua herança espiritual para a evolução da comunidade, originou o que hoje é conhecido pejorativamente e de forma simplista como "macumba", algo mais arraigado na cultura popular do que negros islamizados. Bem como na parte sobre os malês, aqui o autor aborda as contribuições bantas para a cultura e a história do Brasil, destacando religião, língua e a resistência dos quilombos.

"Bantos, Malês e Identidade Negra" é fundamental para estudiosos iniciantes sobre o assunto, e uma leitura muito agradável para o público em geral que deseja conhecer a história do país em que vive, por muito tempo esquecida em favor do status quo da sociedade pseudo-branca brasileira. Existem edições antigas encontradas em sebos e bibliotecas e uma mais nova, lançada pela editora Autêntica no ano passado.

Nei Lopes é formado em Direito e Ciências Sociais pela UFRJ. Além de escrever livros sobre a África e sua influência no Brasil, é sambista, poeta e escreve um blog sobre tudo isso.

Editora: Autêntica
Páginas: 224
Disponibilidade: normal
Avaliação: * * * *